sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Crónicas de um algarvio desempregado: dia 3


Geralmente não resisto à tentação de desafiar as probabilidades, dá-me um certo gozo fazer pouco da percentagem de que pode correr mal o que à partida é para correr bem. Uma relação de, sei lá, 70/30, já é um petisco, e quanto mais próximo dos 50/50, quanto maior a dúvida, melhor.

Saber que o depósito do carro está na reserva e só atestar no dia seguinte; ir a Paredes de Coura sem casaco; andar pelo Urban sem um paninho para ir limpando o chão.

Os invejosos vão chamar-lhe facilitismo. Se calhar é.

Noutro momento teria apanhado o metropolitano para ir à entrevista. Tinha mais de meia hora, dava tempo. Mas a vida tende a tirar alguma lata a quem já a teve de sobra (e a lentamente compensar os menos afoitos), e desta vez enchi os pulmões de ar, ergui os olhos para o céu, bem abertos, venham daí as respostas, levei em cheio com um raio de sol, seguido de um segundo de escuridão -, o sol é de todos e de ninguém, não acha piada que lhe olhem de frente - e resolvi ir a pé, com receio de que uma avaria numa linha de ferro me atraiçoasse.

De maneira que cheguei ao local combinado com dez minutos de avanço, tudo controlado, dava-me jeito uma fita de tenista para estancar o rio com nascente na testa, mas tudo bem, bateria aqui do lado esquerdo num ritmo sossegado. E foi isto. Uma seca. Já a entrevista valeu a pena. Pessoas com vontade de fazer coisas novas. Sem medo de saltar com os dois pés para terreno desconhecido. Faz falta, isto.

Aspirei e lavei o chão de casa antes de ir a um café que a Fátima me tinha recomendado. O espaço é acolhedor como outros, com a vantagem de ter uma janela grande que dá para a rua, muita luz, como paisagem leva-se é com tuk tuks a toda a hora, cheios de turistas a caminho do miradouro local.

Luz tem, som também. Um amigo convidou-me para ir a um concerto de jazz nessa noite, não podia, merda, mas montanha e Maomé trocaram de lugar para que à tarde os mestres do Bebop me visitassem ali, saxofones e clarinetes em parafuso, pareciam putos a correr pelo jardim, liberdade, liberdade, e lá atrás os pais a controlar o ritmo, lá atrás o contrabaixo, grave e autoritário, discreto mas presente.

Achei piada a uma estantezinha ordinária colocada junto ao balcão. Não tinha muitos livros: grande parte deles eram franceses, quase todos os portugueses eram para crianças e sobrava o Anátema, do Camilo Castelo Branco. Ocorreu-me fazê-lo, mas não vou publicar aqui a capa do livro. All in em como tive pesadelos de que felizmente não me lembro.

Em todo o caso, uma boa toca para respirar fundo, aquela. Até me pareceu mal pedir a chave do wi-fi; deixei-me estar, eu e a minha cerveja. Entretanto a Fátima ligou-me a pedir que comprasse bacalhau desfiado.

Já não faltava muito para o jantar que tínhamos combinado lá em casa. Como a Fátima não encontrou bacalhau desfiado à venda, despachei a minha cerveja e saí à rua em missão. Entrei num Pingo Doce ali perto e encontrei um expositor com bacalhau desfiado, pronto a comer. Liguei à Fátima para saber se aquilo servia, mas não tinha rede. Recuei cinco ou seis passos até à zona da fruta, e ao pé dos tomates liguei-lhe de novo. Rede, nada. Só consegui falar com ela e saber que bacalhau pronto a comer não servia, tinha de ser congelado, quando cheguei à parte das melancias. 

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