quinta-feira, 28 de junho de 2012

Esqueci-me de me lembrar do caminho para o Portinho

Pertenço àquela espécie de primata vulgarmente conhecida por 'homem' e, claro, separo as cores entre branco, amarelo, laranja, vermelho, rosa, azul, verde, castanho, cinzento e preto, mas os olhos da C. pediram tanta atenção na noite em que a conheci que, mais tarde, demorei-me um bom bocado na Net à procura da cor perdida, pois justiça não lhes fazia as que conhecia. Percebi que são ambar. Isto já tem o seu tempo, mas cada dia a miúda está mais bonita. É luz de ferir vista. Ao jantar, esta noite, um rapaz da mesa da frente, virado para a televisão, quase de costas para nós, passou mais tempo a forçar as estritas leis do pescoço do que propriamente a ver o 'tikinaccio' prevalecer em Donetsk. Fui incapaz de o censurar - teria feito o mesmo.

Combinámos ir à praia no sábado, e à última hora ganhámos a companhia do D., rapaz descabelado de bom coração e gostos vários, desde o teatro à medicina chinesa. O D. deve ser daquelas pessoas com poucos mas bons amigos, pois fala primeiro e pensa depois. Dispõe, igualmente, de um dos estômagos mais inquietos de que tenho memória. Ao almoço viu-me comer meia sopa - "estou farto disto" - e uma empada de vitela sem, ele próprio, esboçar intenção de morder coisa alguma, mas bastou uma vintena de minutos de viagem para começar a sofrer em voz alta, como as crianças. Depois de algumas negas acabei por lhe fazer a vontade e ei-lo a correr para um Pingo Doce, de onde voltou a acabar um travesseiro, carregando ainda um saco com pão, uma embalagem de fiambre de frango e gomas. 

Era a quarta ou quinta vez que dava um pulo ao Portinho da Arrábida, mas, ao contrário do que aconteceu até à data, investi abundantemente por caminhos que até podiam ter valor mas nada tinham a ver com o nosso destino, de modo que duplicámos o normal tempo de trajecto até conseguirmos meter os pés na areia, já depois das 17:00, julgando ter papados quilómetros suficientes para estacionar no Algarve. A água do mar parecia porreirinha de início, quando molhámos os pés, mas na hora de nos misturarmos nela houve um pleno consenso de que estava "fria como a merda". Aproveitámos um pouco do bom sol. O D. tinha exame de medicina chinesa a curto prazo e de nós fazia cobaias para exemplificar o mérito de diversos e intensos tratamentos manuais. Eu roubei o Cem anos de Solidão à C. e fui citando passagens de uma demência gloriosa. A C. era o centro das atenções e ria-se com frequência, a todos iluminando quando deixava abertos os pequenos e simétricos postes de iluminação em formato cilíndrico. 

Não demorou muito até o sol esconder-se nas costas da Arrábida, atirando com os banhistas para os carros ou as esplanadas dos cafés, sendo este o nosso caso. Pedi três cervejas e um prato de caracóis porque me apetecia comer caracóis, a C. concordou porque queria passar torradas no molho e o D. fez cara feia porque não gostava do petisco - por outras palavras, nunca o tinha provado. De início bateu o pé, que não queria, que não estava para comer 'nhenha', mas em menos de nada já tentava arrancar os caracóis da respectiva casota, ajudado por um palito. "Isto não sabe a nada!", declarou, ao provar o primeiro, fazendo um trejeito de nojo que não convenceu. Concordei em parte com o diagnóstico, embora lhe fizesse ver que, por isso, pela falta de sabor, não vinha o mal ao mundo. Expliquei-lhe que uma caracolada é uma coisa social e que pede cerveja, pão torrado, amigos e calor, além de que o caracol, em todo o caso, "come-se". Contudo, naquele caso, também pedia muito mais molho - o petisco estava com o sal preciso, picante q.b., mas seco, reconheci. Quando os caracóis voltaram à mesa, já vagamente ensopados, ideais, o D. esqueceu-se do tal sabor "a nada" e mudou de conversa sem parar de comer. Foi ele que limpou o prato. Hoje, quatro dias depois da primeira, vai na terceira caracolada. E a C. estava ainda mais gira do que ontem.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Girl wins

Pequenito e escondido, o Bar do T. passa despercebido em Portimão, mas, uma vez encontrado, faz por merecer estar associado à terra do tudo ou nada. À falta de oferta nocturna na cidade para um público mais exigente, o bar do T. é uma alternativa que não desilude dentro dos padrões do típico bar de "bifes". Tem karaoke e uma sala com internet e snooker. Nas paredes há plasmas onde geralmente passam DVDs de música que variam entre o interessante (Live Aid'85) e o azeite suportável do Robbie-tenham-pena-de-mim-Williams em Knebworth, 2003. Os clientes são maioritariamente estrangeiros, de férias, acomodados nos hotéis das redondezas, ou gente da terra como o Vidaul, que é agricultor e não sei ao certo se o nome dele se escreve assim, Vidaul, como o estou a fazer. À chegada ao bar, o meu irmão e eu vimo-lo rodeado de estrangeiras de meia idade, muito rosadas, muito gordas (fish and chips, fish and chips, fish and chips), na maioria casadas mas sem os maridos por perto - estes começam a beber mal acordam e à noite já não se aguentam de pé, deixando as mulheres ao abandono. Durante uma partida de snooker o meu irmão dirigiu-se ao Vidaul e perguntou-lhe se teria albicoques (damascos) no carro para vender. Prevenido, o agricultor sorriu, foi e veio em menos de pouco e o negócio fechou-se: quatro euros para ele e um saco a pingar albicoques para nós. Na verdade, por muito boa vontade que tenha, o Vidaul não se safa com as estrangeiras, não como o T., pelo menos. O T. é um bom anfitrião para um bar pequeno como aquele. De vez em quando enfeita-se com chapéus, está quase sempre bem disposto e nunca deixa de ficar bêbado. A barriga generosa não chega a enganar: o homem parece ter (e tem) a força de dois cavalos. É também fanático-religioso pelo Sporting Clube de Portugal, o que só lhe fica bem.

Numa noite recente havia duas intermináveis estrangeiras, irmãs, que lhe queriam fazer a folha, mas como uma queria mais do que a outra ficou decidido por aí quem teria a primazia. Aos ouvidos do T., bem como à restante clientela, chegou o número do quarto em voz alta, "Five O'Eight!", ao que o T. respondia, expondo os dentes desalinhados, em jeito de promessa, "Knock-knock, room service!", e a estrangeira logo se derreteu num combinado de risinhos histéricos e soluços sem que eu percebesse se o marido dela, já num hipotético sétimo sono, presumivelmente no 508, também faria parte da equação.

Se há coisa que se pode dizer dos estrangeiros que andam pelo Algarve de férias é que bebem muito, e uma das intermináveis irmãs, a mais motivada, bebeu tanto que, já sem conseguir abrir os olhos, subiu ao 508 antes do fecho do bar. O T. prometeu-lhe que iria ter com ela assim que pudesse, mas de repente todos os ventos o empurravam para a irmã, que tinha ficado por ali. Todos os ventos, menos o de uma rapariga portuguesa com um corte de cabelo punk, camisa branca aberta até ao terceiro botão e, diz-se, uma boa fama de aviar tudo o que é estrangeiras. No meio daquela confusão, o T. fazia rir uma irmã mas não esquecia a outra, e de tanto querer as duas acabou sozinho.

terça-feira, 5 de junho de 2012

O Boss dava conta do Chuck Norris

Bruce Springsteen & The E Street Band, por Laura Haanpää

O Boss é tão Boss que, acabado o Rock in Rio-Lisboa 2012, onde me estreei ao fim de cinco edições, faz sinal aos irmãos de vida da E Street Band e ei-los de volta ao palco para tocar 'Twist and Shout' dos Beatles Top Notes por cima do fogo de artifício que marca o fim de festa. Se não sabia, a pessoa que deu ordem para premir o botão do fogo de artifício ficou a saber que a festa acaba quando o Boss quiser. 

O Boss é tão Boss que, 19 intermináveis anos depois da última actuação em Portugal, no velhinho Alvalade (L), regressa num festival em que o cartaz musical só representa, na melhor das estimativas, 50% das actividades, carrega na apresentação do novo álbum (Wrecking Ball), que mereceu três das quatro primeiras músicas, e espera pelo fim para oferecer ao povão um mini best-off com as big 4, 'Born in the USA', 'Born To Run', 'Glory Days' e 'Dancing in the Dark'.

O Boss é tão Boss que não convidou uma, mas duas mulheres para fazer de Courtney Cox na 'Dancing in the Dark'.

O Boss é tão Boss que aos 62 anos passou o concerto a correr entre público e palco quando na véspera tinha tocado durante três horas em San Sebastian.

O Boss é tão Boss que fala melhor português à meia noite do que eu depois das quatro da manhã. 

O Boss é tão Boss que nunca se cansou de elogiar o talento da lendária E Street Band, composta por quase 20 músicos que produzem, de longe, o som mais arrebatador que já ouvi ao vivo.

O Boss é tão Boss que quase me esqueço como é bom ouvir 81 mil pessoas a cantar em português, mesmo que seja cada vez mais urgente para o Tim (não o Booth, o dos Xutos) estar rodeado de vozes amigas que tornem possível levar certos temas até ao fim.

O Boss é tão Boss que quase me esqueço do maluco dos Kaiser Chiefs a desaparecer colina acima para desespero dos seguranças, aparecendo depois a descer em slide, sobre a multidão, sem nunca parar de cantar a música que fisicamente abandonara.

O Boss é tão Boss que quase me esqueço do quanto gosto dos James e da maravilha que é vê-los ao vivo, da rara comunhão que conseguem ter com o público, e somos sempre poucos para cantar hinos de uma vida como a 'Laid', 'Sit Down' ou 'Sometimes'.


O Boss é tão Boss que, pela primeira vez em muitos anos de festivais, com a bexiga em suplício, deixei-me ficar nas grades durante quatro horas e meia para conservar o meu spot privilegiado - ou seja, do fim do concerto dos James ao fim do concerto do Bruce Springsteen. E sim, bebi cerveja das 16h às 22h.

O Boss é tão Boss que convidou um puto certamente com menos de dez anos para cantar o refrão da 'Waiting on a Sunny Day' perante 81 mil pessoas e depois pô-lo aos ombros e disse-lhe que a partir daquele momento passava a fazer parte da E Street Band.

O Boss é tão Boss que falou sobre a sua 'maria' - "está em casa com as crianças e manda cumprimentos" - e dos tempos difíceis que se vivem na América "e aqui", em Portugal, "onde muitas pessoas perderam os seus empregos", especificou. Ao fim destes anos todos o Boss, filho pródigo e portador do imaginário popular dos Estados Unidos, o país que ganhou o óscar vitalício para Maior Umbigo, nunca perdeu de vista o poder (e responsabilidade) que um microfone nas mãos lhe confere, e continua a tentar salvar o mundo.

O Boss é tão Boss que tomou conta de nós quando brincou, quando falou a sério, quando cantou, quando tocou e até quando, a dada altura, uivou. Tomou conta de nós. Não nos sobrava um pingo de ego. Acredito que naquela noite também ele desse conta do Chuck Norris.

O Boss é tão Boss que, na 'Spirit in the Night' espalhou a mensagem da força interior em versão pastor evangélico, fazendo uma missa a céu aberto no Parque da Bela Vista com o intuito de, disse, estimular os nossos órgãos sexuais com o poder do rock n'roll.

O Boss é tão Boss que foi três vezes às grades buscar cartazes com nomes de músicas empunhados pela malta das primeiras filas, regressava ao palco, mostrava-os à família e de seguida tocava-as. "Aqui há discos pedidos", estampava-se no sorrisão do Boss, enquanto os jornalistas atiravam o rascunho do alinhamento oficial para o cesto do lixo.

O Boss é tão Boss que chamar-lhe 'Chefe' é eufemismo. O homem é uma besta. A melhor de todas.

sábado, 2 de junho de 2012

The Dø, tesouro


Está na hora de lamber os The Dø tipo Lassie pelo segundo álbum deles, um tesouro que tem de ser descoberto pelo máximo número de pessoas e outros. Há dois anos servi-me deles aquando do primeiro disco para fazer de engraçadinho ao mesmo tempo que os metia no mapa do Castelo, mas fiquei a dever-lhes uma. Sem favores: beleza destas tem de ser comentada a preceito e partilhada. 

Both Ways Open Jaws é o melhor disco escondido de 2011. Nunca é previsível. Está sempre a crescer a cada audição, fruto de uma produção doentia de tão genial. Há por aqui detalhes que só mesmo de headphones para os descortinar e que acrescentam sempre qualquer coisa à atmosfera dos temas. Estes podem começar melosos e acabar ásperos. Podem ser sons de orquestra, coros a evocar filmes da Disney ou batidas electrónicas que fariam o João Botelho saltar à corda sem corda na cave do Lux. Podem ser tribais. Jazzísticos. Ameninados. São, seguramente, únicos: milagrosamente, na era das gavetas, raras são as publicações especializadas que associam o som da banda a determinado estilo ou influência. Os The Dø vivem da descoberta e, à medida que afastam as sebes, afirmam-se por tentativa-acerto.

O grande responsável deste pedaço de magia é o francês Dan Levy, multi-instrumentalista e compositor de bandas sonoras para filmes. Foi num deles, Império dos Lobos, que conheceu Olivia Merilahti, compatriota de mãe finlandesa. Conheceram-se, a coisa valeu a pena e formaram a banda. Ela, dona de uma beleza perturbadora, escreve as letras e empresta a voz aguda e doce às construções riquíssimas de Levy. A sensação de preenchimento sensorial é total, de uma grandeza, lá está, cinéfila. 'Smash them All', medalha de prata  em 2011 para o júri déspota do Castelo, resume com alta fidelidade o que atrás foi descrito. A primeira parte da música, que vai até ao fim do primeiro refrão, é espirituosa. Aquelas teclas no fim do refrão são uma delícia. O sentido de humor está à flor da pele. Mas a dada altura o tema desencarrilha e assume-se dramático. Claro está que nunca deixa de ser brilhante. Pelo contrário: se muda é para melhor.

No seu segundo disco os The Dø atingem um estádio tal de maturidade que, das duas uma: ou fazem um terceiro disco neste registo, ficando provavelmente abaixo das expectativas, tão alta está a fasquia, ou investem por outros caminhos, talvez electrónicos, para nos voltarem a deixar de queixo caído. Eu cá apostaria na segunda hipótese. Both Ways Open Jaws é para ouvir sem distracções. Aqui. Em baixo deixo uma versão ao vivo e a cores da faixa 'The Wicked & the Blind', em que o par Dan/Olivia é ajudado, pelo menos, por um guitarrista, um baterista, uma saxofonista e mais povo para coros.